12 de dezembro de 2006

A que fim levou Almir Gabriel?

Caros amigos,

Em 1984 eu tive uma conversa com o então prefeito biônico de Belém, Almir Gabriel (AG), nomeado na época pelo governado Jader Barbalho, de quase duas horas e muito bem descontraída.

Antes, eu lembro, mesmo sendo nomeado, AG foi disparado o melhor prefeito que Belém teve pós 1964.

Diferentemente dos prefeitos da ditadura militar, isso tem uma congruidade: AG foi simpatizante nos anos 50 e 60 do Partidão. Sua administração na prefeitura, por exemplo, foi de esquerda porque tinha uma coisa que ele preservava muito: a eficiência e o papel atuante da sociedade civil na ação da prefeitura.

Era visível isso porque AG tinha companhia de aliados do PCB (Raimundo Jinkings, Romero Ximenes, Mariano Klautau, Arnaldo Jordy, José Maria Quadros de Alencar, Roberto Correa, etc.), PCdoB (Paulo Fonteles, Socorro Gomes, Neuton Miranda, etc.), setores de esquerda do PMDB (Simão Jatene, Paulo Elcídio, Ronaldo Barata, João Jesus Paes Loureiro, Itair Silva, etc.), PRC (Humberto Cunha), MR-8 e um conjunto pessoas democratas oriundas do MDB. Todos esses no guarda-chuva do PMDB. Até porque o PCB, PCdoB e MR-8, em 1984, ainda eram clandestinos.

O assunto da nossa conversa girou na ascendência sobre as concepções de Estado, de sociedade civil e uma gestão moderna e democrática. AG colocou-me que para governar uma cidade de Belém tinha que ter um espaço franqueado com a sociedade civil, por conseguinte, existia para o ex-prefeito uma idéia de que o setor público era um dos entraves para o crescimento da cidade porque sua forma de atuar era autoritária e necessitava de uma reforma profunda e um choque de gestão baseado num plano diretor e no ingresso da sociedade civil debatendo as próprias questões crucias da prefeitura.

Eu lembro até hoje de uma frase do AG naquela nossa conversa: “Sem participação da sociedade civil, um prefeito vira autoritário”. Assim mesmo que ele falou. Era notoriamente uma posição de um homem democrata e de esquerda.

Eu lembro que depois foram mais outras quatro oportunidades que ficamos papeando sobre o Estado e a sociedade civil. AG é um homem extremamente inteligente e interdisciplinar no mundo acadêmico. É por isso que eu lembro também que ele dissecava que esse poder social da sociedade civil dependia, por sua vez, da forma como se organizava e como atuava o poder político, tal como ainda se estruturava este último.

AG deixava claro que se o poder político se estrutura verticalmente, hierarquicamente, como uma pirâmide, poucos em cima e muitos na base, sem muitas conexões entre si, então esse poder social da sociedade civil será muito reduzido e as pessoas terão medo de empreender, desconfiarão umas das outras e não farão muitas coisas juntas. E se o poder político atua de modo centralizador e autoritário, se não procura criar condições para a participação coletiva, para que as pessoas possam tomar decisões coletivas democraticamente, então esse poder social da sociedade civil será baixo.

Foi quando AG criou a ASCOM (Assessoria Comunitária) na Prefeitura Municipal de Belém. E foi dirigida pelo grande comunista Mariano Klautau. Eu relembro, para ser enfático, que nós estávamos num período de arbítrio e que AG era prefeito biônico. Mesmo assim, AG apostou na ousadia democrática e justificou que a criação da ASCOM era porque existiam na época muitas redes sociais – quer dizer, se as pessoas estão conectadas umas às outras e se elas podem ter múltiplos caminhos para estabelecer relações entre si – e, além disso, existiam muitos processos na transição democrática que eram democrático-participativos (do tipo conselhos, fóruns, com a presença de pessoas do governo, das empresas e das organizações da sociedade civil), logo, esse poder social da sociedade civil era alto e precisava que a ASCOM em reciprocidade canalizasse toda essa demanda social.

Mesmo na época sem uma constituição democrática, AG acreditava que a verdadeira modernização do Estado brasileiro e a introdução de um novo paradigma da sociedade civil tinham que ter a capacidade de atender as demandas dos diferentes segmentos da sociedade, porque o país passava por mudanças nas instituições políticas e nas suas relações com a estrutura de poder vigente, o que significava que era um processo longo e que deveria levar décadas.
Eu lembro do mesmo modo que ele sempre citava (com insistência) que faltava para cidade um Plano Diretor para que democratizasse o espaço e a sociedade civil fosse a parteira desse debate inicial. Em outras palavras, AG defendia que quanto mais participação da sociedade civil mais democracia participativa acontecia e maior era o nível, o estoque ou o fluxo de melhoria cidadã de uma sociedade.

Com essa convicção democrática, AG marcou pra nós comunista porque se tornou senador da esquerda do PMDB, do PCB, do PCdoB e do MR-8 em 1986. Como senador fez novamente um belíssimo trabalho na Constituinte. Aliás, o melhor parlamentar paraense que tivemos na Constituinte. Em 1990 ele foi o candidato consensual ao governo do Estado de uma frente de esquerda: PSDB, PT (o candidato a vice-governador era na época o petista: Raul Meireles), PSB, PDT, PCdoB e PCB.

Eu faço essa digressão toda porque eu sei e jamais vou deixar dizer que AG foi um sujeito que veio da esquerda e pautou sua vida pela busca democrática. Ao contrário do Jader Barbalho, por exemplo, que veio do hiper-fisiológico PSD paraense. Já AG, não. Ele veio, repito, das searas comunistas do Partidão e uma visão societária infinitamente melhor que os Barbalhos e companhia.

Então, a que fim levou AG?

Esta pergunta tem um mote. É que em 12 anos de governo tucano (contando com seu afilhado político favorito, Simão Jatene), o que eu vi foi totalmente contrário ao pensamento do AG prefeito e também senador constituinte. Tudo porque nos seus governos, pós-1995, AG negou e descredenciou a sociedade civil paraense. Virou um sujeito autoritário. Confesso que é fadigoso, no sentido doloroso, dizer isso porque ele representou um sonho de compartilhamento democrático e igualmente a perspectiva prá mim de um grande líder da esquerda paraense. E hoje vejo que foi apenas uma quimera dos anos 80.

Pra que não pensem que seja algo de pensamento isolado de minha parte, vejam o que diz, depois da derrota eleitoral, o meu amigo Lúcio Flávio Pinto: “O Liberal [as Organizações ORM] tem sistematicamente procurado convencer Almir Gabriel a assumir a liderança tucana contra o governo petista, um lugar que lhe pertenceria sem a mais remota sombra de dúvida. Tal convicção faz pensar na dissociação entre o mundo da realidade e as fantasias palacianas ou de gabinete. Uma pessoa autocrática, auto-suficiente, vaidosa e arrogante pode imaginar que a verdade não extrapola o que vê e pensa. Por isso não vai lá fora conferir. Alguns podem passar muito tempo - ou todo tempo de sua vida - nesse oásis compulsório (e compulsivo), como o generalíssimo Franco, o camarada Stálin ou o guia Mao. Mas esse privilégio é um capricho da história. Em regra, um dia caem na realidade, se machucam e não se recuperam nunca mais. Este parece ser o caso do doutor Almir José de Oliveira Gabriel. Em 1988 ele cometeu uma fuga tristemente célebre na política recente do Pará, que acabou estigmatizando-o: às vésperas da eleição para prefeito de Belém, desistiu unilateralmente de ser o candidato do PMDB, se isolou numa fazenda próximo a Brasília e só um ano depois, forçado a falar numa entrevista na televisão, encontrou um pretexto para sua atitude surpreendente. Tão estapafúrdia que impôs ao seu partido de então (hoje execrado) a maior derrota já registrada em todas as eleições disputadas em Belém (Sahid Xerfan, que agora não conseguiu se eleger deputado, obteve 78% dos votos válidos). Sem a catapulta do poder federal, do poder estadual e, provavelmente, também do poder municipal (o "doutor" Duciomar Costa deve pular para o outro lado do muro, até por estratégia de sobrevivência), o doutor - doutor mesmo, como diria Hélio Fernandes - Almir dificilmente terá outra opção: vai cuidar das suas esquecidas orquídeas. Quando tinha as costas largas, ele semeou ventos. No limbo, deverá colher tempestades, conforme prognostica o cancioneiro popular. Quando planejou (sim, porque seus movimentos sempre são previamente pensados) ser o grande líder, o maior de todos, seu outro lado se manifestou: calculista, frio, incoerente, autoritário, vingativo - um ditador, enfim. Mesmo sem carisma e empatia popular, foi até o lugar que poucos atingiram, com dois mandatos de governador. Explorou muito bem a aspiração popular ao homem austero, duro, determinado, limpo. Mesmo que ele tenha sido apenas pálida cópia do modelo omitido: o caudilho Magalhães Barata”.

Essa análise do Lúcio Flávio Pinto pode até parecer pesada, mas não é. Por conta do seu lado autoritário almirista, tem-se um quê de explicação: é que AG ficou propositalmente encastelado no palácio e negou seu passado, conseqüentemente, deixou de perceber, como exemplo gritante, que a superação da pobreza como insuficiência de desenvolvimento no Pará exige, para além da responsabilidade fiscal, de conhecimento da máquina e de poder. Exige, portanto, estímulo ao esforço político coletivo na consecução de ações de interesse público e a participação política dos cidadãos em um novo modelo de governança. Foi aí e assim que AG pautou seus governos: concentrando apenas no ideal de seu autoritário devir político e pouco (ou quase nada) ouvindo seus aliados e, principalmente, a sociedade civil.

Certa vez, na condição de dirigente do PPS, em 1996, eu tive oportunidade de participar de uma reunião que ele promoveu com seus partidos aliados. Aliás, uma das raras (!) reuniões deste tipo. Nessa reunião, AG, numa posição imperial, disse aos seus aliados (ou melhor, seus subalternos) que ele era o epicentro da governabilidade (até aí tudo bem), mas completou dizendo: “e que vocês [ditos aliados] têm que me fornecer carta branca”. É que AG queria fazer tudo com toda aquiescência dos aliados sem no mínimo dialogar com os próprios aliados. O debate (sic) do orçamento do Estado era um dos pontos dessa carta branca e o outro era exigir (!) a maioria parlamentar na Assembléia Legislativa..

Igualmente com um caráter monopolizador, AG quando optou apenas por políticas de alianças táticas e utilitaristas teve apenas como modelo um produto de decisões unilaterais desse governo. Muitos de suas ações foi implantada por decreto, de modo voluntarista, sem ao mínimo (ou pelo menos) discutir com seus aliados. Em grade parte seu governo não foi fruto de uma ampla negociação política, que deveria conduzir a uma autêntica aliança pelo Estado, a um novo contrato social, que fosse capaz de assegurar o crescimento com estabilidade e democratização, num Pará totalmente marcado por violência e supressão social e econômica.

Pois bem, se com os ditos aliados AG teve essa postura, imaginem com a sociedade civil que tanto ele proclamava da sua necessidade nos anos 80. Raras, muito raras (!), foram situações que ele procurou a sociedade civil e quando procurou foram algumas frações superdependentes do aparelho estatal e no sentido de cooptá-la para seu projeto.

Foi quando AG fez continuadamente do aparelho de Estado, um jeito “paraense patrimonial de ser”. Um protótipo disso: abusou de “obter”[1] votos de parlamentares por troca de dezenas de assessorias especiais e/ou por trocas de rubricas pessoais dos deputados no orçamento do Estado e sem o mínimo de conversa e tabulação futurista no interior de um projeto estratégico e societário.

Logo, seu governo foi reativo. Apenas reagia aos problemas varejistas. Como foi apenas reativo, deixou de ser propositivo e ficou marcado por péssimos indicadores sociais, abaixo até de Estados mais pobres economicamente na Região Norte. Vou citar apenas três áreas: educação, saúde e saneamento. Nessas três especialidades de governo, AG não tem e não teve propostas de Estado para acabar com as graves doenças endêmicas e epidêmicas, diminuir consideravelmente o analfabetismo e melhorar o saneamento básico no interior paraense, etc. Em resumo, AG não teve nenhuma proposta de Estado nas áreas sociais.

Na recente eleição, AG veio novamente com sua postura imperial e deixou o principal assunto de lado: governar com a sociedade. AG deixou de dizer que nós precisamos é começar a introduzir e a utilizar os novos conceitos de gestão gerencial no Estado, substituindo os conceitos eminentemente almirista. Nesse modelo burocrático monopolizador almirista, o aparelho do Estado funciona na base de controle dos insumos: leis, normas e procedimentos pré-definidos que AG definia e que tinha que seguir rigorosamente. Neste modelo, AG mandava as normas e procedimentos "técnicos", ignorando completamente a demanda e os problemas da sociedade civil.

Daí a rigidez, a falta de agilidade e o anacronismo total na governabilidade do Estado do Pará no período do tucanato. Por isso AG não quis apostar em um novo paradigma gerencial, onde se flexibilizam os controles dos insumos e os controles da produção de bens e serviços públicos e seus resultados, tendo como referência as demandas da sociedade e do cidadão. Esta mudança de paradigma também não se tornou real porque AG não quis debater ações que permitissem o desenvolvimento de sistemas de informações gerenciais, dando total transparência à utilização de recursos, aos procedimentos e às transações de toda ação estatal, e permitissem também ainda acompanhar e mensurar os seus resultados.

Esse padrão de predomínio do Estado almirista levou a que ele se constituísse, historicamente, com duas características predominantes.

Primeiro. Por um sistema burocrático e administrativo, para seguir a tradição weberiana, de característica patrimonial, e que se distinguir pela apropriação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados, que permanecem, no entanto subordinados e dependentes do poder central almirista, formando aquilo que Raymundo Faoro chamou de "estamento burocrático do líder".
Segundo. AG com essa visão patrimonialista criou um jogo político que se desenvolveu em condições que ocorreu uma exclusão, com anuência do Estado patrimonial almirista, com todo os tipos de setores sociais quanto à sua inclusão nas vias de acesso aos benefícios e privilégios controlados pelo Estado. Logo, não é uma negociação entre iguais: "fora do poder não há salvação" dizia o velho político mineiro. Assim sendo, sendo assim, a política almirista é tanto mais importante quanto maior é o poder do Estado e, e por isto, na própria tradição almirista, todas as questões passavam sempre pelo crivo do todo poderoso AG. A sua volta e a não candidatura para reeleição do Jatene é uma dessas ilustrações patrimonialista.

A síntese disso é tudo que o Estado almirista, ao mesmo tempo em que tratava de “organizar” e cooptar a elite econômica e política, excluía a sociedade civil de qualquer forma de acesso a seus benefícios. Portanto, a exclusão da sociedade civil é somente o exemplo mais flagrante do processo almirista conservador que caracterizaram os 12 anos de tucanato.
Porque além de cooptar, enquadrar ou excluir pessoas e setores da sociedade, o Estado almirista desenvolveu uma atividade econômica que pode ser caracterizada como neomercantilista Como no mercantilismo dos velhos tempos, alguns afilhados do Estado almirista se intrometeram em empreendimentos econômicos de todo tipo e protegeram a atividade de empresas ligadas ao mundo tucano e assim tem-se a distribuição de privilégios econômicos a grupos privados que estabeleceram e deste modo formaram-se alianças de interesse com o estamento burocrático almirista.

Para finalizar, eu não quero dizer que a aposentadoria do AG foi concretizada pela sua derrota eleitoral, mas quero deixar claro que AG mudou muito e pra pior. E o passado de esquerda de AG não merecia um possível fim de carreira desse tipo: com um perfil autoritário e derrotado pela vontade popular.

Aquele abraço,
Lauande


[1] Esse foi o verbo mais decente que eu encontrei na língua portuguesa para ilustrar este caso da política almirista.

8 comentários:

Yúdice Andrade disse...

O texto apresenta não apenas profundidade no conteúdo, mas também a serenidade dos sábios - vindo em boa hora, após as eleições, para que não se suscitem interesses escusos pessoais. Mais uma vez, aprendi muito com a leitura de suas idéias. E confirmei aquilo que, menos judiciosamente, já percebera.
Penso que todo cidadão paraense tinha a obrigação de ler este texto.
Tenha em mim um admirador e um leitor assíduo.

Anônimo disse...

Já tinha tido contato com teu texto, através de um grande amigo comum: o ACM que presta. Achei muito boa tua defesa da idéia, mais ainda pelo privilégio de ter vivido os fatos narrados de perto.
Entretanto, ainda me resta a dúvida, que o próprio Antônio Carlos (nosso amigo comum) sugere sempre: terá sido Almir Gabriel algum dia realmente de esquerda? Acho que a dúvida é pertinente.

Anônimo disse...

Acabo de ler no Juvencio sobre o blog do Lauande. Gostei do texto sobre o AG, mas acho que o Lauande exagerou ao dizer que AG foi esquerda. Do resto, é muito bom o texto.

Eduardo André Risuenho Lauande disse...

Caros Radol, Nunes e Rocha Junior, folgo pelos comentários. Ser de esquerda é algo sempre emblemático. Almir se dizia de esquerda, por isso eu reputo que ele era sim de esquerda. Se ele mudou, paciência. Esse ônus vai ficar na sua bibliografia. Infelizmente.
Porque AG é sim um homem que tem ser lembrado, mesmo nas suas contradições ideológicas e políticas.
Valeu pelas presenças aqui no Blog

Anônimo disse...

Excelente, este artigo. Muito bom! Parabéns, Lauande.

Anônimo disse...

Para quem, como eu, acompanhou, e viveu, parte dessa história e não tem o privilegio da tua memória, nada mais prazeroso que ler o teu saboroso e preciso texto e relembrar fatos e idéias que tantas vezes já debatemos em memoráveis discussões (algumas etílicas e molhadas nas águas do parque aquático José Maria Platilha na nossa Passárgada em Mocajuba).
A propósito, parabéns pelo Blog. Tava demorando!Se destaca entre os que impõem reflexão e não apenas repassam informações.
Grande Abraço!

Unknown disse...

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Anônimo disse...

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