Hoje o saudosismo chegou antes mesmo de acordar, passei a noite sonhando com lauande, com seus algozes, era um paradoxo permeado pela alegria e risada gostosa do Tio Dudu e a crueldade dos bandidos que ceifaram sua vida. Essas sensações quiçá fosse motivadas pelas informações obtidas pelo sociólogo Edson Jr., sobre o possível paradeiro de um dos malfeitores. Assim, ao acordar, as saudades do Gordo estava mais premente, e como forma de saciar a lacuna deixada resolvi postar um de seus contos para relembrarmos de sua poética arte de escrever. Esse conto retrata o início de seu amor pela Marambaia, e em especial o Conjunto Mendara. Infelizmento o lócus do crime que vitimou-o. Esta foto é no quintal da Casa dos Lauandes, palco de intermináveis partidas de dominó (lustrado) e muitos goles de cerveja.
ALÉM DA PRIMEIRA LÉGUA PATRIMONIAL
Belém, 12 de janeiro de 1997
Meu amigo Paulo André Barata
Hoje é aniversário de Belém. Nossa terra natal. Vou contar a estória da minha família e sua chegada num pedaço de Belém. Gostaria que tu pudesses apreciar. No dia 21 de junho de 1969, meu pai, Salim Lauande, apresentou à família, minha mãe, Gracy Lauande, meus dois irmãos, Marcelo e Flávio Lauande, e eu, André Lauande, a casa que ele tinha acabado de comprar, sem a aquiescência dos Lauande. Foi uma surpresa geral para todos. O meu pai Salim tinha um modo de cultivar, com todo esmero, surpresa como dever de vida. A sutileza de raciocínio como fonte nascedoura de surpresa era elétrica no meu velho árabe bicolor (forma de tratamento dos torcedores do Paysandu Esporte Clube - O Papão da Curuzu). Meu literário Salim era leitor voraz de Fernando Pessoa, Marx, Sócrates e Platão. Fazia da poesia e da filosofia instrumentos da sua condição humana. Contagiante, partia sempre pelo bom humor. Dizia que: -Nada é insosso quando temos bom humor. A sua passionalidade, característica da raça árabe, nascia, paradoxalmente, desse bom humor luzente. Como benévolo árabe, reunia um bom humor como forma de presentear todos seus amigos e parentes. O pavimento do seu novo bom humor era, naquele momento, a compra da casa. Como ele era argucioso, um espírito desarmado para o prazer inesperado do imprevisto; logo esse imprevisto era, também, naquele momento, a conquista da casa própria. Que era uma casa média, de três quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro e um quintal - para lá de razoável. A casa tinha 83 metros quadrados. Era de alvenaria e pintada de azul-papão. Já o terreno tinha 10 metros de frente e 43 metros de fundos. Estávamos todos jubilosos, afinal de contas, íamos sair do sufoco de um aluguel para um domicílio próprio. Tudo financiado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), durante 25 anos. Um sonho que fora alcançado, com uma batalha incrível de meus pais, no período entre o governo Costa e Silva e o governo Médici. Ocorreu que, no caminho, enquanto dirigia seu carro, o meu eloqüente Salim nos informava que a localidade desse nosso novo teto era além da 1ª Légua Patrimonial da nossa bela Belém do Grão Pará, ou seja, ficava longe demasiado para o gosto da minha mãe, porque não estava afeita àquela distância do Bairro da Marambaia em relação ao que nós conhecemos, hoje, como centro de Belém. A identidade de espaço geográfico, para minha mãe Gracy, apoderava-se estritamente até a 1ª Légua Patrimonial de Belém. A palavra centro era, portanto, significado de centralidade geográfica, ou melhor, passando do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (hoje Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Pará), na Avenida Almirante Barroso - já naquela época uma das principais avenidas de Belém-, tudo era considerado zona rural. O marco divisório da 1ª Légua Patrimonial de Belém era em frente ao Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. Esse marco era composto por um monumento que simbolizava a entrada de Belém. Esse monumento tinha e tem um desenho fálico. A partir desse monumento iniciava o olhar geográfico de minha mãe, entre o urbano e o rural. Minha mãe Gracy sempre era afável e generosa quando se tratava de defender seus Lauande. Ciclotímica, mudava do coloquial para o clássico em fração de segundos, principalmente quando o assunto era a defesa dos Lauande. Mas não posso negar, tinha e tem um bom humor incrível. Meiga e audaz, concomitante. Conquanto, naquele momento, ela avaliava que aquela distância - o longe - seria algo danoso na nossa criação. Minha mãe Gracy acreditava que nosso futuro estaria muito distante, caso morássemos naquele lugar longe. Ela dizia: -Estamos longe de tudo e de todos. Esse longe, a bem da verdade, tinha um lugar na geografia de Belém: era o bairro da MARAMBAIA, mais exatamente, no CONJUNTO MENDARA I. Nesse bairro havia uma proposta do governo do Coronel Alacid Nunes (ARENA- Partido do governo militar), no estado do Pará, final da década de sessenta, de ser o bairro dos conjuntos habitacionais. Ressalte-se, o bairro da Marambaia teve, entre 1968 até 1977, nove conjuntos habitacionais, patrocinados pelo BNH. Da Rua Boaventura, onde morávamos, no bairro do Umarizal (centro da cidade) até o Conjunto Mendara, o trajeto durava cerca de 30 minutos, num possante Fusca-68/69 do meu esportista Salim. É bom que se diga que nesse tempo não existia a Avenida Pedro Álvares Cabral - hoje uma das maiores avenidas de Belém, que dá acesso a Marambaia com maior rapidez-, por isso nosso trajeto era via Avenida Almirante Barroso, invariavelmente. Ao chegarmos no Conjunto Mendara, percebemos que havia uma placa do BNH informando que tinha um total de 287 casas, mas meu cicerone Salim informava que apenas três casas eram habitadas. A sua inauguração já tinha decorrido há cerca de cinco meses, segundo informações do meu entusiasta Salim. Aquilo deixou uma pulga atrás da orelha da minha mãe Gracy, que logo foi indagando de forma incisiva: -Por que ninguém quer morar aqui?
-Como assim? - perguntou evasivamente meu despistante Salim.
-Égua!!!, pelo que notei, esse bairro não deve ter nada de atrativo! - sentenciou minha mãe Gracy.
-Tem sim... êpa! Chegamos -disfarçou meu eufórico Salim.
-Pai, aqui é muito longe. É capaz de o senhor sair barbeado daqui e chegar barbudo na cidade -já em frente da nossa casa, mano Marcelo, ironizou ao sair do carro.
-Meu Deus do céu! Não tem ninguém residindo nessa rua, homem de Deus! Isso aqui de noite deve ser uma solidão de dar dó -disse minha mãe Gracy, transparecendo sua angústia.
-Vamos ver a casa, pelo menos -disse meu desconcertado Salim, saindo pela tangente. Beijou a chave da casa e foi abrindo com todo cuidado a porta da frente. Como meu ortodoxo Salim sempre foi um homem de esquerda, entrou com o pé esquerdo. -Serás nossa até morrermos! -Aquela promessa de meu finalista Salim nos deixou emocionados. Nunca tinha percebido essa característica do meu resoluto Salim com pacto de morte. A comoção tomava conta do meu ledo Salim. Tudo era felizmente exponencial nos seus trejeitos. Ele não economizava palavras para demonstrar seu sentimento por aquela conquista. Num gesto mais explosivo, gritou: -Puta que pariu!!! Parece que vocês perderam a língua!
-Não, muito pelo contrário. Meu pai, isso é um orgasmo para nós! Mostre logo essa casa! -exclamou alegremente meu irmão, Marcelo. Pelo prazer de ser congratulado, ao entrarmos, meu aficcionado Salim explanava com tanto carinho o desenho e formas da casa que seus olhos brilhavam. Era uma alegria imensurável do meu mutuário Salim. Parecia que tinha comprado uma mansão em Nazaré (bairro nobre de Belém). Foi quando olhei de um lado e de outro, procurando um jeito de fugir daquela comoção. Fixei-me nos olhos já lacrimosos do nosso árabe cabeludo e não contive a emoção: -Como és lindo! -e comecei a chorar com ele. Chorar. E chorar. À exceção da minha mãe Gracy, todos começaram a chorar. Como sempre amei meu estonteante Salim, eu fui um filho arraigado no seu caráter de incitamento pelo amor. Foi quando comecei a elucubrar: -A existência do homem está na ostentação da emoção do pai com os filhos. Meus irmãos, um olhando para o outro, pararam de chorar e começaram a rir da minha elucubração. O mano Marcelo logo concluiu: -O mano André começou a pirar!
Minha mãe Gracy interrompeu aqueles momentos de reflexões, com branduras, e retrucou: -Salim, mostra o restante da casa. Meu contagiante Salim continuou com seu papel de cicerone. Lá pelas tantas, na cozinha, houve um mal estar, dada uma informação aprovisionada pelo meu noticioso Salim: -O quintal dessa casa tem fundos com o cemitério São Jorge. Imediatamente exclamou minha mãe Gracy: -Agora, eu que digo: puta que pariu!! Estás brincando?! Um cemitério? Porra! Tinha que ser do BNH! O semblante de minha mãe Gracy ora ficava pálido, ora bufava de raiva. Ele ratificou a informação ao abrir a porta da cozinha que nos fornecia uma visão do quintal. Em seguida, tínhamos a do cemitério. O que dividia o cemitério do nosso quintal era um muro de apenas 1 metro e 10 centímetros de altura. Foi um impacto para todos nós! Lembro que meu irmão Flávio olhou-me com tamanho ar de arrebatamento incoado que me causou espanto: -Êh!, seu porra, fala alguma coisa! - ele não falou nada, apenas começou a sorrir de jeito incoativo. Obstupefata, palavra usada com freqüência por meu vocativo Salim, minha mãe virou-se para ele, embora que mais calma, e argumentou: -Por que não contaste isso antes a nós? -Ia adiantar? -respondeu numa evasiva sepulcrária. Para maior desespero, naquele instante acontecia um sepultamento a cerca de 25 metros do nosso quintal. Quando, de repente, uma senhora desmaiou. Configurou-se, então, uma algazarra. Eis que surge um rapaz, bem em frente ao muro do quintal, nos pedindo um copo d'água com açúcar. Foi quando minha mãe respondeu, sem muita cautela: -Infelizmente, não moramos aqui.
Foi então quando houve uma dissensão hostil entre meu fausto Salim e minha mãe Gracy: -Tu piraste, Salim?! Aqui eu não moro. Só falta tu elogiares esse governo de gorilas filhos da puta, porque construíram uma casa perto do cemitério. Vê se algum General Filho da puta veio morar aqui nesse fim-de-mundo?! O que deu na tua cabeça?! Observa uma coisa: é do BNH, em conseqüência vamos pagar pro resto da vida. E mais: não temos sequer alma viva, só morta, né?! Quem vai nos acudir em caso de emergência? Os defuntos?! Ah!!!, tudo é uma merda, nesta porra!!
-Eu já me agradei, -disse o mano Marcelo, na sua pontual picardia - não tem vizinho e isso significa que não tem barulho. Já o mano Flávio não entendia o medo de minha mãe Gracy por estarmos próximos ao cemitério. Foi quando ele sussurrou no meu ouvido, acreditando nos nexos da tal situação inusitada daquele enterro: -Os vivos matam, não os mortos!!! O ambiente estava pesado. Meu arábico Salim, filosofando, interrompeu a todos: -Compreendam uma coisa: quando entramos em um ambiente novo, de estimulação complexa, passamos por instantes de atordoamento. Tudo é uma mancha confusa que hostiliza os sentidos. Aos poucos, as coisas se destacam desse borrão e começam a nos entregar seu significado, na medida da nossa atenção. Assim será o cemitério para nós. Como meu rejuvenescido Salim era uma suntuosidade e também um sujeito poético por totalidade, continuava matutando sua justificativa da compra da nossa casa, numa ordenação teórica, sem perder o seu vigor filosofante: -É o trabalho perceptivo que colhe as imagens do real e estas se tornarão estáveis para nosso reconhecimento, por um período. Por fim, quero deixar claro para ti minha deusa mulher, que nesse bairro pode até não morar General, mas podemos construir nosso conforto perceptivo de espírito e moradia.
Minha mãe Gracy enfureceu-se: -Muito bonito! Mas o cemitério continua bem aí. Sei que os mortos estão mortos, é obvio, mas muito me desagrada morar perto deles. É por demais macabro. Aliás, não é aqui que está enterrada a criança do homem da mala?
-É mãe. -respondeu assustado o mano Flávio. Mas o meu filósofo Salim não cansava de raciocinar por pensamentos filosóficos: -Minha deusa-mulher, nem sempre estamos dispostos à aventura da percepção. Somos insensíveis e desatentos às coisas que povoam nosso mundo e, por isso, sofremos de uma perda, de um empobrecimento que nos faz capitular e enxergar através de mediações impostas. Nisso, o que seria um ar macabro? Todos ficaram calados. Como era um homem sem ar merencório, meu incisivo Salim dirigiu sua voz e olhar a minha mãe Gracy: -Isso é algo imposto à tua cabeça. É um castigo que sofremos à medida que não sentimos, nem exercemos simpatia pelas coisas, somente por aquilo que nos dizem. A simpatia, que é uma afinidade pré-categorial do nosso pensamento, com algo concreto, traz, em si, uma intuição de ordem superior, que começa com a negação do novo, ou até do óbvio. Portanto, os mortos estão mortos e por isso eu os prefiro aos vivos.
-Por que construíram um cemitério tão longe da cidade? Perguntou minha mãe Gracy ao meu astuto Salim, no intuito de rebater seus argumentos por outra vertente.
-Mas aqui é também Belém. Uma garbosa Belém!!! -meu amadurado Salim, num jeito fleumático de filósofo e poeta. -Claro que não. Ou melhor, talvez! Mas ninguém vai lembrar disso aqui na hora de trazer benefícios. Quem vai querer saber do lugar onde o diabo perdeu o cachimbo? Os Generais? O BNH? Só Deus, esse sim, talvez se interesse! - era só uma provocação e minha mãe Gracy pelo fato de meu pai ser agnóstico.
-Tu queres que eu te diga que isso não é Belém!! Ora, não acredito no governo dos generais, porém essa é a única oportunidade de termos nossa casa própria depois de 15 anos de casados. Além do mais não temos mais capacidade financeira de nos mantermos na B-O-A-V-E-N-T-U-R-A D-A S-I-L-V-A!!! E depois... nós vamos mesmo é morar aqui!
-Salim, me escuta. Presta atenção. Aqui nesta merda de lugar, não tem banco, escola, feira e tem apenas uma linha de ônibus, essa droga do Sacramenta Nazaré, caindo aos pedaços. E ainda o homem da mala que vem visitar o túmulo da filha de vez em sempre. Deve ser uma alegria, dar de cara com ele daqui do nosso quintal todos os dias?
-Gracy, não dramatiza, não avacalha com o nosso novo lar. Calma. Hoje é assim... mas o projeto desse governo filho da puta é de que tenha uma infra-estrutura mais digna para nós e para mais 5 conjuntos que surgirão neste bairro.
-É assim que tu queres? Então vamos ver o que vai acontecer. Só te aviso que daqui a um ano faremos uma avaliação de tudo, certo? E tem mais: vais gastar um trocado para reformar esse padrão BNH. Ou tu achas que eu vou morar em arquitetura projetada para classe média já proletarizada? Concordas?
-Em termos. Mas tudo bem. Submeto-me ao capricho da classe média metida a besta, que no fundo não tem porra nenhuma no bolso! Um ano depois, a minha família pautava um jantar de comemoração, com brindes e avaliação, numa harmonia lucescente de fazer inveja naqueles que apostavam no desentendimento entre os Lauande. Meu afeiçoado Salim, mais do que nunca, tinha se adaptado ao conjunto Mendara. Meus irmãos e eu tínhamos aumentado geometricamente o número de emoções em nossas vidas. Emoção versus emoções. Alegria versus alegrias. Nossa família, na excitação das emoções e das alegrias, sugeria a todos: imagens cinematográficas. No lócus dessas imagens cinematográficas: o cemitério era para nós um parque de diversão. Isso mesmo!! Sons e imagens. Nele podíamos tirar mangas e cajus, jogar bola, empinar pipas, vender areia e água gelada no dia de finados, que para nós era o Círio do Mendara, de tanta gente que ia ali. Mas o marcante, no lócus dessas imagens cinematográficas, foi o primeiro aniversário dos Lauande no Mendara. Era sábado, 21 de junho de 1970, à tarde. O Presidente da República na época, General Médici, inaugurava um outro conjunto residencial na Marambaia, que levava seu nome, bem em frente ao Cemitério São Jorge. À noite, por volta das 23 horas, iria passar o jogo da seleção brasileira pela fase inicial da Copa do Mundo contra a Romênia, transmitida em VT completo pela televisão, através da TV Marajoara, canal 2, filiada da TV Tupi. Todos estavam ansiosos para assistir nossa seleção canarinho: Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson, Jairzinho e companhia. Só não podíamos ouvir aquela música “...noventa milhões em ação....pra frente Brasil....salve a seleção...”. Meu esquerdista Salim proibiu veementemente essa canção na nossa casa. Foi uma pena. Convenhamos: essa música é tão gostosa. Paciência. Neste mesmo dia, meu inovador Salim tinha comprado uma TV da marca COLORADO, na loja R. Mendonça. Naquele mesmo dia, também eu, meu artístico Salim e meus irmãos tínhamos terminado de pintar dois quadros. A concepção foi do meu surrealista Salim. O desenho foi do mano Marcelo. A coloração foi minha e do mano Flávio. Já bem emoldurados, eles seriam colocados, num ato solene, na parede de nossa sala de estar, na hora da janta. Nessa grande oportunidade, minha mãe Gracy mandou pintar a parede (branco-gelo) para que pudesse receber nossos quadros de forma mais adequada. O primeiro quadro, retratava o polêmico muro do quintal e o quintal de nossa casa, onde ao fundo apareciam várias sepulturas, retratadas em forma de livros abertos, revelando suas páginas. Mais ao fundo, apareciam ainda as mangueiras e cajueiros onde subíamos para tirar as tais mangas e cajus todos os dias. No segundo quadro, apareciam os Lauande do ponto de vista de quem estava no cemitério. Todos os integrantes de nossa família apareciam com suas cabeças penduradas no varal de roupa do nosso quintal e ao fundo deste, por cima do telhado da casa, aparecia um pôr-do-sol rosado, tal qual minha mãe descrevia ser o pôr-do-sol mendariano. Como são belos e representativos em nossas vidas esses quadros... É bom que se diga que eles, até hoje, estão em nossa parede no Mendara. A mesa estava toda ornamentada com frutas (muitas mangas e cajus do cemitério) e rosas vermelhas. Meu festeiro Salim havia comprado dois vinhos-do-Porto da safra de 1956 e uma grade de refrigerante da marca preferida de minha mãe: Guaraná Cerpa. Na vitrola da marca TELEFUNKEN tocava, desde a manhã, Beatles, Lupercínio Rodrigues, Roberto Carlos, Ciro Monteiro, Maysa, Chico Buarque, Quarteto em Cy, Monsueto, Capyba, Tom Jobim, João Gilberto (nunca intangível na casa dos Lauande) e um disco novo do Jorge Ben, a pedido do mano Marcelo que gostava do balanço e da mistura do samba e do rock que o cantor fazia. Ah!, os convidados: só teve dois, para a alegria de todos os filhos, pois sobrou bastante comida, o tio Milton, irmão de criação do meu sapiente Salim e o meu primo de 2º grau Reinaldo Braun. As justificativas que as pessoas deram por não terem comparecido foi a distância, o Mendara ficava muito longe. O famoso longe da geografia dos amigos e do imaginário dos habitantes do centro da cidade. A festa vai começar. No fundo musical: Chega de Saudade com o João Gilberto. Ar perfumado. Sons e sorrisos. A postos: todos sentados. Muita comida, vinhos e frutas. Meu obeso Salim, na cabeceira da mesa, abriu o evento com uma eloqüência loteada de dialética e sem preterir a balada da emoção: -Este jantar de comemoração de um ano no Mendara é um símbolo de nossa aventura. Aqui tem Beatles, Fernando Pessoa e as imagens de nosso futuro. É com alegria que eu vejo todos nós, que construímos esse espaço, plenamente adaptados. Dizem que aqui não é Belém. Não compartilhamos desta idéia. O bairro de Nazaré, no séc.XVII, era considerado interior do estado e hoje... é bairro nobre de nossa cidade. Apesar de não gostar da palavra nobre, o Mendara reabsorve essa característica nas nossas mentes, porque o nobre para nós é o Mendara e o seu soberbaço em nosso futuro. Com todo entusiasmado, o meu douto Salim, continuava com mais elocução da nossa conquista. Abusando das gesticulações de braços e cabeça, direciona seu discurso no universo da Marambaia e do cemitério São Jorge: -Não será a Marambaia...a melhor parte de Belém, hum? Pelo menos é aqui que temos um cemitério gostoso, agradável, onde meus meninos brincam com toda a paz eterna. Não é, meus filhos? Não é legal o cemitério?Quantas alegrias ele lhes trouxe? Quantas saborosas mangas e cajus vocês já comeram daí? Vocês que poucas peladas jogaram na Boaventura, aqui jogam todos os dias, e com prazer. Digas tu, Marcelo, aqui não é pai d`égua?
-É meu pai, aqui está bem melhor. Até o mano André já arranjou uma menina. Cuidado, André, senão vou ter que arrastá-la para fazer um colóquio sexual prazeroso no cemitério. -brincou o mano Marcelo comigo.
-E tu, minha deusa mulher, que te encantaste com esse pôr-do-sol que se põe no final do cemitério, ao qual chamas de atmosfera cor-de-rosa. Deixando-te bem melhor. Hoje és a nossa “La Belle de Jour”.
-É verdade, meu gordinho! Apesar de minha intransigência, rendo-me ao encanto deste conjunto com o deleite de morar perto do cemitério. Uma paz beatificadora pela arborização e o silêncio dos mortos!!! -exclamou minha cândida Gracy.
-Por fim, gostaria de dizer, minha deusa mulher e meus impolutos filhos e irmão, que se um grego quisesse encontrar uma das faces de sua época, teria os deuses nos templos para contemplar. E um homem do renascimento iria encontrar uma dessas faces nas pinturas de Botticelli e Leonardo da Vincci. um homem da Espanha, no final da década de trinta, iria encontrá-la em Guernica de Picasso. Se um homem quisesse conhecer uma das faces de São Paulo, seria melhor parar na Avenida Paulista, às 18 horas, escutar o buzinaço dos carros, em meio a todo aquele caos do trânsito da cidade grande, quando o povo volta para casa, depois de mais um exaustivo dia de trabalho. São faces. Nós, os Lauande, temos nossas faces. Agradavelmente: belas faces!!!
Meu musical Salim, num suspiro emocionado, parou por alguns segundos a sua fala. Respirou. Abaixou a cabeça. Com a mão direita, retirou algumas lágrimas dos olhos. Minha mãe Gracy, também com lágrimas nos olhos, acaricia carinhosamente, com a mão esquerda, os cabelos brancos do meu emocionante Salim. Que cena linda!!! Um choro: de alegria!!! E de pé: ele olhou todos. E todos lacrimosos. Silêncio generalizado. Com toda essa emoção, meu venturoso Salim continuou a memorar: -Mas se alguém quiser lembrar da Marambaia dos anos 70, mais precisamente da família Lauande neste bairro, terá uma das faces nestes dois quadros que pintamos e denominamos de SEPULTURA ABERTA e PÔR-DO-SOL ROSADO. Eles representam nossa imagem numa determinada época, neste tempo em que estamos vivendo. O futuro nós pintaremos a posteriori. Agora, os atores desse enredo, nós, os Lauande, estamos na espontaneidade poética daquela frase de Fernando Pessoa: “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”.
-Principalmente perto do cemitério, não é meu pai? -ironizou o mano Marcelo. Todos caíram na gargalhada. Quando todos estavam com o cálice de vinho na mão, meu sinfônico Salim requereu, da sua orquestra familiar, três saudações: - Viva o Líbano! -Viva o Mendara! Viva o Cemitério São Jorge!
-Faltou um “viva” ao Papão da Curuzu, não é meu pai? -ironizou novamente o mano Marcelo. -Por que não? Viva o nosso Papão da Curuzu!!! -novamente todos caíram na gargalhada. E a festa varou madrugada adentro. E assim: discursos, comemorações e festas ocorreram, e já tem mais de trinta e dois anos que estamos no Mendara, coladinhos ao Cemitério São Jorge. Cheios de recuerdos de sons, frutos, cheiros, sexo, samba, quibes, amor, paz, rock, bossa-nova, cinema, imagens, regados por alegrias e tristezas - ingredientes máximos da vida humana. Até mesmo quando meu eterno Salim morreu de enfarto, em 18 de novembro de 1994, quando velamos seu corpo ao som dos Beatles, João Gilberto e poemas de Fernando Pessoa. Tudo acompanhado de muita cerveja e muito quibe. Tudo
8 comentários:
Um espetáculo.De chorar de alegria
Tadeu
Que bonito!
Relendo esse texto que achei muito bonito , me ative numa passagem arrepiante:
Comentário do "mano Flávio" aquele que acreditava nos nexos das situações inusitadas:"os vivos matam , não os mortos"
Rapaz!!!!!!!!!!!
Abs a todos
Tadeu
OLA SOU MORADORA DO CONJUNTO MEDARA MORO NA RUA K, POXA ESTOU FAZENDO UM TRABALHO DE PESQUISA, SOU ALUNA DA UFPA E RESOLVI ESCREVER SOBRE O LUGAR ONDE MORO, SERÁ QUE VC PODERIA ME FORNECER ALGUMAS INFORMACOES? TERIA COMO VC ME ENVIAR UM EMAIL PRA QUE EU POSSA ESTAR ENVIANDO ALGUMAS PERGUNTAS??? DESDE JA AGRADEÇO MESMO QUE SUA RESPOSTA FOR NEGATIVA. OBRIGADA. LUCIANA
MAIS UMA VEZ LEMBRANDO COMO FAÇO PRA ACESSAR ESSE BLOG POIS ENTREI PELA GOOGLE OK. DESDE JA AGRADEÇO. LUCIANA
entrei sem querer no seu blog,pesquizando a sepultura da minha mãe q se perdeu,e conheci a historia d sua familia e fiquei maravilhada de como os anos passam, mas na memoria estão sempre vivas as melhores lembranças vividas,infelizmente eu ñ tenho uma historia como a sua pra contar,minha mãe morreu e ñ a conheci, e soube q foi enterrada no cemiterio São Jorge,assim vim parar no seu blog,enquanto pesquizava,parabens pelo belo texto!
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