Após a partida de Lauande, eu, Joice e os amigos da Confraria Cachorrada começamos a escrever as Cartas para Lauande. Eis uma delas - uma belíssima carta do Roberto Araújo, pesquisador do Museu Goeldi e membro do baixo clero da Confraria.
Ima Vieira
Caro Lauande,
A morte com freqüência me deixa sem palavras. Diante do caráter definitivo da sua irrupção no transcurso de uma existência que ela encerra (sobretudo de forma tão brutal como no teu caso), os próprios pensamentos que me ocorrem parecem vãos ou levianos. Lembro-me que a primeira coisa que me veio à mente quando soube da tragédia de teu assassinato foi que não teria mais a oportunidade de ser o orientador da tese que planejavas escrever. Sempre costumavas dizer que me escolherias para acompanhar esse trabalho... Disseste-o de novo no começo do mês de julho, quando nos vimos pela última vez.
Assim, até hoje me surpreende o fato de jamais ter-me expressado publicamente sobre o desaparecimento precoce de dois outros grandes amigos – Jorge Pozzobon e Christian Geffray. Tu não os conheceste (talvez tenhas cruzado com o Jorge, que esteve muito tempo conosco no Museu). Mas não é sem razão que eu associo vocês três aqui, homens de espírito irrequieto e grande integridade intelectual.
Jorge – além de um currículo acadêmico fértil e original – deixou-nos as excelentes crônicas do póstumo Vocês Brancos não têm alma, publicado pelo Museu Goeldi e pela UFPa. Na intimidade, como tu, ele dava livre curso a uma inclinação talentosa para a coprologia, usando o obsceno como forma de expressar-se sobre as relações humanas sem cair na vulgaridade. Quando li a “Arte Fascinante de Chupar uma Buceta”, pensei na definição de Jorge para as mulheres: “são a demonstração ginecológica da existência de Deus”. (cf. p. comparação Lauande op. Cit.: “vá e lamba e beije esse pequeno pedaço do céu que ficou exposto na sua cara. (...) Ou ainda: “o adorável cheiro exalado pela abertura do paraíso feminino” etc). Maneiras, talvez, de explorar a oportuna coincidência fonética e gráfica – em nossa língua - entre as duas acepções de “escatologia”. Os fins últimos e o significado das secreções, afinal, não convergem em algum momento nesse mesmo espaço inconsciente que se constrói (de maneira nem sempre feliz) a partir do desejo de ser desejado por Outrem, e que nos torna humanos?
Christian, por sua vez – sem dúvida um dos grandes pensadores de sua (nossa) geração - aprofundou como quiçá nunca antes dele a utilização da psicanálise na reflexão sociológica, adotando em certos momentos a noção de amor (o amor irracional das massas por aqueles que as conduzem, o amor que o senhor exige do escravo e/ou do dependente etc.) para teorizar sobre certos modos de dominação presentes na sociedade brasileira. Um de seus livros, recentemente traduzido para o português pela Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, diz-nos imediatamente respeito: A opressão paternalista na Amazônia Brasileira. Por vias próprias, ele prosseguia em novas frentes debates já iniciados por autores que tu, Lauande, gostavas de citar, dos quais falávamos e com quem mantinhas afinidade. Vejamos:
“Domingo retrasado eu vi o grande mestre e filósofo (o não assumido tucano) José Arthur Giannotti no programa Canal Livre da TV Bandeirantes. Entre outras coisas, ele falou que “nunca um partido fez como o PT: assaltou sistemicamente o estado brasileiro”.Mas não é só o Giannotti que diz isso. Vejo jornalistas, da seara política e políticos da oposição proclamando que o PT é assaltante do estado brasileiro de forma sistêmica. E que a vinda do PT para o Palácio do Planalto foi tão somente para assaltar o estado brasileiro.Nesse discurso o PT foi o primeiro e único na história a fazer infestação do patrimonialismo sistêmico no estado brasileiro.Faz-me rir.Ou então, diante de tanta hipocrisia, a única coisa que eu peço: é que essas pessoas respeitem, pelo menos, a inteligência do povo brasileiro.Parem com isso!Leiam Raimundo Faoro.Leiam Sérgio Buarque de Hollanda.E vejam que eu não citei nenhum marxista, apenas magníficos weberianos.Essa hipocrisia é para dissimular o quê?(...) não me venham com uma dosagem virginal de pureza política ao dizer que o PT é hoje o mal de toda política brasileira, porque esses articulistas dificilmente fizeram um acerto de conta com a história na forma mais elementar: o passado patrimonial e elitista dos seus patrões”.
Poderíamos conversar horas (com 750 ml de Lua Cheia) para saber se um estilo paternalista de fazer política seria uma espécie de dimensão subjetiva da estrutura patrimonialista brasileira e da dominação organizada pelos estamentos estudados por Faoro; ou se ao contrário o paternalismo seria a estrutura de um modo de dominação, ao passo que patrimonialismo constituiria apenas seu aspecto por assim dizer contábil... e por aí vai. Pouco importa. Concordaríamos sobre o essencial: a necessidade de lutar por um sistema político capaz de representar e implementar interesses verdadeiramente coletivos.
E nisso reside um derradeiro (mas não menos importante) aspecto daquele que tu pudeste representar para mim e para muitos: alguém capaz de retirar de seu intenso (e imoderado) apetite pela vida uma energia mais do que suficiente para rememorar debates ou idéias e recolocá-los no fluxo de nossas próprias reflexões, mesmo (e sobretudo) quando às vezes já nos sentíssemos céticos ou desesperançados demais para voltar a elas com facilidade. Através de teus arquivos, mas também do carinho e do respeito com que honravas teus chegados.
A morte não nos retira as palavras. Ela nos obriga (a nós que ainda ficamos por aqui) a internalizar os diálogos que mantínhamos, tornando-nos mais conscientes do legado que, em vida, os amigos nos deixaram como parte de nós mesmos.
Até mais tarde então, Lauande.
Roberto
Um comentário:
Realmente, com uma tal produção intelectual a cultura pode se considerar salva!!!!!
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