O dia de hoje manifesta sua presença de forma mais forte. Deve ser o encontro logo mais a noite onde estaremos prestando mais uma deferência ao amigo querido. A querida Ima, sugestionou que no referido evento pudessemos relembrar seus escritos, gostei da idéia e posto aqui mais um conto do tio Dudu.
Abraços Fraternos.
Carlos Farias.
PLATILHA, O SUBVERSÍVO
Faz vinte e cinco anos que ocorreu a abertura do Congresso Nacional pela Anista, em São Paulo. Em Belém, tinha o Raimundo Jinkings, Humberto Cunha, José Platilha, Sá Pereira e tantos outros pela luta da anistia. Meu amigo Alencar, e é sobre o anistiado Platilha que eu vou escrever.
Em 2002, o nosso amigo José Maria Platilha perdeu, em pouco tempo, seu filho e sua mulher. Platilha resistente permanecia lado a lado com seus amores de vida. Sempre na sua branda sonoridade de solidariedade e moderação. É, só mesmo o Platilha, para ter tanto comedimento e musicalidade com a vida. Seja que o Platilha ceda, algum dia, à depressão, seja que dela queira fugir do nosso convívio, nunca deixará de ser o que é e foi: meu camarada e confidente. Platilha é, acima de tudo, meu amigo! E de se constituir para nós, amigos e militantes políticos, de contínua e melódica referência democrática.
E por ser o Platilha, meu amigo Alencar, invariavelmente ele liga pra mim sempre por volta das onze da noite. Minha mãe Gracy e minha esposa Débora já até sabem que é ele: -É o Platilha! Sei que vou permanecer no mínimo uns quinze minutos ao telefone. É muito papo.
Atendo o Platilha ininterruptamente porque além de boa praça, é merecedor de todos créditos de paciência de um jovem como eu. Tu bem sabes, meu amigo Alencar, afora de boa praça que ele é, também é um homem de desmesurada história na política paraense e brasileira.
Em conseqüência de ser boa praça, Platilha é infinitamente jovem. Mesmo aos 74 anos. Por conta desse regozijo jovial do Platilha, o meu amigo e camarada Edson Júnior foi o idealizador duma brilhante homenagem ao nosso sociólogo cassado pelo golpe de 1964. Por cômputo, hoje o subversivo Platilha é o mais velho (sic) Presidente de Honra da Juventude Socialista do PPS.
O camarada Edson Junior idealizou essa homenagem pela elementar pergunta: -Quem pode dizer que o nosso Platilha não é mais jovem do que nós?
Com maior número de anos no costado de vivência partidária aqui no estado do Pará, o Platilha, além de ser o mais ancestral militante, diria meu mano Flávio Lauande, é também o Presidente de Honra da Juventude Socialista do PPS pela sua perícia de decodificar que a linha divisória entre o certo e o errado não é necessariamente certo ou errado como muitos querem. Não é para qualquer um esse atilamento! Tem que ser o Platilha! Precisa, antes de tudo, ser jovem! Tem que ser o Platilha!
Tanto que ocorreu uma homenagem ao Platilha: a festa de sua posse como presidente de honra da juventude socialista do PPS/Pa. Foi uma primorosa e memorável festança na sede do meu velho Partidão. Lá tinha para mais de 100 pessoas. Platilha discursou, dançou e ficou muito emocionado com todas as homenagens. Todos fizeram questão de beijá-lo. Outro diapasão da homenagem foi à fila dos camaradas para pronunciar-se sobre a feição de caráter e a vida desse comunista e flamenguista.
Ele que é meu camarada e confidente. Platilha é, acima de tudo, meu amigo! Sempre digo que quando eu tiver a idade do Platilha, se eu chegar lá, vou querer um camarada para me informar sobre as novidades do mundo, do Partidão, da política, do futebol, do socialismo...Será muita prosa.
Nesse mesmo período em que ele perdeu em pouco tempo seu filho e sua mulher, eu bebi com intensidade com meu velho novo camarada. Nos bares da nossa existência, bebíamos. Improvisávamos e falávamos.
E foi muito no acalorar da criação que surgiu nosso ato de filosofar. Dialogávamos sobre tudo e todos. Entre o Dalcídio Jurandir, os bêbados, os mendigos, o Karl Marx, o Vevé do Remo, o Paysandu, os boleros, o Leonardo da Vinci, o socialismo, o Flamengo, a Bossa Nova, as zonas dos meretrícios de Belém nos anos 50, o tenentista Magalhães Barata, a pobreza, a alegria, a razão, o Jean Paul Sartre, o Caio Prado Junior, o Sérgio Buarque de Hollanda, o Gilberto Freyre, o Humberto Lopes, o José Ramos Tinhorão, o Dom Hélder Câmara, o Ruy Barata, o Jinkings, o Humberto Cunha, o Almir Gabriel, o Fernando Henrique Cardoso, as mulheres, o Noel Rosa, o Wilson Batista e, em tão alto grau, outros personagens e temas. Nos embriagamos pelo mundo, numa abundância de histórias e estórias. Ríamos. E ficávamos, como ficávamos!, até pra cima das três horas da manhã.
Mesmo no bate-papo aprazível, eu ficava preocupado com meu velho co-réu de noitada. Só ia embora quando o ônibus dele chegava. No bairro de São Braz, ficávamos no ponto de ônibus do Terminal Rodoviário. Era o horário do pós-cristo das três. Mas, antes tinha a expulsadeira. Lá tinha e tem O Carimbó e o Indeá.
-Eduardo, eu ainda tenho dois reais. Vamos com mais uma gelada?
-Platilha, e o dinheiro do teu ônibus?
-Eu sou jovem, tenho 74 anos. Eu não pago passagem! Este dinheiro é da expulsadeira.
Começo a rir e passo a minha mão nos seus cabelos brancos e beijo sua cabeça.
E o Platilha devolve com uma honrosa citação: -Não há nada nesse mundo que pague nossa amizade! E completamos pra mais de duas dezenas de geladas na mesa do bar O Carimbó.
Eu já liso e leso da falta de dinheiro, Platilha já pagava com seu cheque ouro do Banco do Brasil nova conta no bar.
Tudo ao redor de muitas prostitutas, mendigos, crianças vendendo amendoim, bêbados, taxistas, garçons e um mundo de gente como manancial de alento e engenho para nossa filosofia, tudo já com uma intrépida dosagem etílica sobre a interrogação na avaliação da condição humana.
Numa dessas excursões etílicas de nossa vã filosofia, o meu amigo Platilha principiou e teorizou sobre as condições e valorizações em que se realizam as atividades laborais do homem moderno, que se caracterizam, seja onde for, por um aumento vertiginoso de exigências às suas capacidades e possibilidades físicas e intelectuais. Isso ele mensurava como cada vez mais ordinário e positivo.
Foi quando ele completou que nem sempre os recursos que dispõe o organismo humano e a estrutura já formada das características psicológicas e sociais (pessoais) não acompanham as mudanças da revolução técnico-científica. O preconceito social sempre fica, por exemplo, atrasado em relação às mudanças da revolução técnico-científica.
Platilha com toda sua experiência falava de sua mulher que tinha câncer e seu filho que tinha AIDS. Em seguida perguntava sobre as próprias capacidades e possibilidades físicas e intelectuais do homem nas mudanças da revolução técnico-científica. Argumentava que muito se tinha evoluído nos medicamentos dessas doenças, via revolução técnico-científica. Porém, o preconceito contra essas doenças continuava. Tanto que coar os preconceitos aos psíquicos dos enfermos de sua família foi uma das suas incumbências no período doentio dos seus entes. Isso atrofiou, em parte, o humor do meu amigo Platilha.
No momento em que falávamos sobre preconceito, olhei pro rosto do Platilha, vi que seu semblante ficava um pouco tristonho. Descrevia seu calvário diante das contradições das doenças de seus entes e as capacidades e possibilidades físicas e intelectuais do homem de não absolver doenças que tinham envoltórios de tabus.
Da sua recente experiência, Platilha comentava que as contradições das doenças que têm envoltórios de tabus, surgem e influenciam diretamente a saúde dos indivíduos, os índices quantitativos e qualitativos de incidência de doença na população, os processos demográficos, o desenvolvimento físico dos homens; e também, por preconceito, os recursos ficam mais escassos para seus tratamentos.
Para o Platilha tais contradições são estudadas por varias ciências - Sociologia, Psicologia, etc. Entretanto, o papel dominante deveria ser também desempenhado, naturalmente, pelas numerosas ciências médicas e pela mais ampla prática dos organismos da saúde pública. Mas isso não acontece com eloqüência, porque o preconceito é maior que o humanismo e solidariedade.
Dizia Platilha: -Eduardo, o preconceito social ainda expande a dor fisiológica do enfermo, mesmo avanços na ciência.
Nessa hora Platilha levemente chorou! Eu, também!
Na caixa de som do Carimbó tocava nesse momento o samba do Caetano Desde que o Samba é Samba. A letra do baiano tropicalista diz: ... a tristeza é senhora/ desde que o samba é samba é assim/ a lágrima clara sobre a pele escura/ a noite e a chuva que cai lá fora/ solidão apavora, tudo demorando em ser tão ruim/ mas alguma coisa acontece no quando agora em mim/ cantando eu mando a tristeza embora...
Naquele samba do Caetano, Platilha recuperou-se. Eu, também. A verdade é que a batida do violão e a voz do Caetano revigorou meu filósofo e ex-funcionário da extinta SUDAM.
Platilha recorreu ao seu choro para dizer que isso está vinculado, em particular, ao crescente significado dos problemas fundamentais de natureza filosófica, ou, mais propriamente, ao sociofilosóficos, relacionados com a visão do mundo, com a saúde do homem e a diminuição e, quem sabe, a extinção do preconceito.
Esses quebra-cabeças são complexos e diversificados. Não adianta tratar da AIDS e do câncer se o psíquico do enfermo é massacrado por preconceitos sociais e que conseqüentemente afetam a própria patologia principal.
Do somático ao social há uma dialética da vida humana, ou seja, entre a sociedade e a saúde do homem poderia haver um respeito, que do vocábulo grego, diz Platilha, viria uma ética.
A linha do raciocínio do Platilha para o aperfeiçoamento multilateral da ética prevê o melhoramento dos níveis de vida (econômico e cultural) do povo, bem como a criação de condições adequadas ao desenvolvimento respeitoso com homem enfermo. Eis a pedra capital na abordagem da esfera decisiva da vida social na percepção do Platilha.
Neste contexto, torna-se particularmente manifesto que é precisamente o homem, o ingrediente principal, o criador da legítima robustidão motriz do progresso científico-técnico, da sua postura para com os valores morais, assim como dos requisitos da sua vida e formas de manifestação da vida social tenha uma proclamação contra uma miopia social que é o preconceito.
Ao som de Caetano, a filosofia e o choro do Platilha ficavam mais iluminados contra a miopia social do preconceito. Uma miopia social qua avançava no somático da sua mulher e do seu filho, atravessadamente pelo psíquico deles. O lado espirituoso e hilário do campo filosófico dessa estória é que eu e o Platilha estávamos num espaço plural e respeitoso com as prostitutas, os bêbados, os mendigos e crianças vendendo amendoim e que são tão discriminados pela miopia social do preconceito.
Gesticulando bem os braços, Platilha, em oposição ao preconceito, levantou-se e declamou a todos no bar: -Não serei um poeta de um tempo caduco! Viva Carlos Drumonnd de Andrade!
Eu, prostitutas, bêbados, mendigos, crianças vendendo amendoim, taxistas, garçons e um mundo de gente bebendo, no pleito duma resposta, devolvemos todos juntos: -Viva Carlos Drumonnd de Andrade!
Um mendigo, todo sujo, abraçou o Platilha e disse: -Não entendi, mas gostei!
O meu consorte de bebida já estava pra lá de emocionado com toda aquela animação pluralista do comportamento entre bebidas, filosofia, poesia e interação social que acontecia no Carimbó. E devolveu com mais uma ao público: -Sejam subversivos! Sempre na democracia!
Bateram palmas.
E surge uma prostituta na mesa: -Que lindo isso, meu velho! Nesse exato momento, pela caixa do som do Carimbó, toca a música Ovelha Negra da Rita Lee. -Essa música é minha cara! Diz a prostituta toda eufórica.
Platilha um pomposo galanteador, tira a menina para dançar e já batendo palmas e mexendo todo o corpo, baila no rock da pirada e incendiária Rita: ...levava uma vida sossegada/ gostava de sombra e água fresca/ meu Deus quanto tempo eu passei sem saber/ foi quando meu pai disse: filha, você é ovelha negra da família/ agora é hora de você assumir e sumir/ baby, baby, não adianta chamar/ quando alguém está perdido procurando se encontrar/ baby, baby, não vale a pena esperar, oh, não/ tire isso cabeça/ ponha o resto no lugar...
E o dia raiou. 5:54 da manhã. Terminou a festa. O bar Carimbó fechou suas portas. A prostituta pagou mais dez geladas. Platilha deu um beijo no seu rosto, agradeceu e fomos para a parada do Terminal Rodoviário. Platilha pegou o ônibus da linha Cidade Nova-08. Já eu, o Marambaia/Ver-o-Peso.
E a vida continuou...
3 comentários:
Porra,
Como dói ler este conto teu, Tio Dudu. Quanta falta fazem o Platilha e tu, meu impoluto Camarada.
Como o Tio Dudu encararia o livro "A CABECA DO BRASILEIRO" de Alberto Carlos Almeida?
Leiam e façam uma análise a partir do pensamento do Tio Dudu.
Amigos,
Recebi mesmo essa mensagem do Eduardo, daí o vocativo. Essa primeira versão está por aí na lista Democracia velha de guerra.
Depois ele fez acréscimos e transformou nesse conto.
Valeu, Lauande!
Abraços do
Alencar
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